quarta-feira, 23 de março de 2011

Crucifixos em escolas públicas

Há uns dias a Itália viu-se autorizada pelo tribunal europeu dos direitos do homem a manter os crucifixos nas suas salas de aula. Uns pais quaisquer tinham-se queixado há uns anos pelo que consideravam uma violação da laicidade por que o estado italiano supostamente se rege.

Acho este tema particularmente interessante, nomeadamente pelas reacções que tenho ouvido de condenação daquele tribunal. Acho também interessante que o tribunal tenha concluído que a presença dos crucifixos não vai contra o direito dos pais de educarem os seus filhos de acordo com as suas convicções religiosas e filosóficas.

Em qualquer país em que a educação seja obrigatória, como o é nos europeus, esse suposto direito não existe em nenhum sentido real. Eu lembro-me de já nos livros de estudo do meio da segunda-classe encontrar ambientalices, e de me forçarem a absorve-las até ao décimo segundo ano (a princípio era o buraco no ozono, depois o aquecimento global, no fim já eram as alterações climáticas, agora não faço ideia qual o novo hype). Lembro-me também da perspectiva com que a história me era ensinada, por exemplo do ponto de vista ocidentalizante que caracterizava toda a análise da Guerra Fria no livrinho do nono ano (eu era comunista na altura, pelo que me marcou…) ou a visão megalómana da nossa história. Lembro-me de anualmente começar os programas das disciplinas científicas com a cartilha hipotético-dedutiva. Lembro-me dos temas escolhidos nas disciplinas de línguas que, supostamente, me iriam alargar o vocabulário “mais importante”. Lembro-me das obras que estudei para língua portuguesa e do cheirinho de educação sexual que se dava a ciências. Mas também me lembro da pedagogia vigente, por exemplo da noção de “currículo em espiral”, bem como da forma como a matemática era ensinada. E eu já não sou do tempo das “formações cívicas”…

Se o meu pai fosse anarquista político ou epistemológico, duvido que de forma alguma pudéssemos considerar que ele tenha tido liberdade para me ensinar de acordo com as suas convicções quando eu fui forçado a aprender aqueles programas. Lembro também que no ano passado um casal alemão se exilou nos EUA por estas razões.

As razões por que somos endoutrinados desde cedo são claras. E seria muito insensato a um tribunal manter a condenação de um Estado por este tema: se crucifixos são entendidos como um atentado à (pseudo)liberdade de educação, então o que dizer de tudo o resto? Claro que no acórdão pode escrever-se o que for necessário… O princípio é esotérico: não há liberdade na educação nem na formação, mas a retórica é a de que há.

Quanto à questiúncula do crucifixo em si… É um símbolo passivo que traduz uma eventual herança cultural de boa parte da comunidade. A laicidade não pode implicar uma eliminação de toda a relação institucional do estado com as confissões. O estado tem de reconhecer as especificidades do seu principal. Não achei nada mal que houvesse tolerância de ponto quando cá veio o papa. A razão está precisamente no sucesso dessa visita: as pessoas queriam vê-lo! Não posso dizer que toda a gente tivesse ficado entusiasmada. Mas um número suficiente ficou para justificar essa tolerância. Não é uma questão de laicidade nem de pragmatismo: é a relação do estado com a sociedade civil. Qualquer empregador com o mínimo de faro económico deixaria um seu funcionário de outra religião qualquer festejar as suas epifanias também.

Sei que muitos se sentem incomodados com a ideia de uma educação verdadeiramente livre: pais a decidirem até certa idade precisamente o que é que os filhos aprendem. Imaginem só o absurdo da senhora dona Conceição que lava as escadas do meu prédio a determinar o que o Helderzinho vai aprender… O Helderzinho tem direitos que a comunidade (i.e. o grupo a que o objector pertence) tem de proteger! Se tu pensas assim, então a educação pública obrigatória, no teu caso, cumpriu o seu objectivo.

9 comentários:

  1. Depois desta decisão só me pergunto então pq não podem as Mulçumanas usar os seus lenços em vários países?

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  2. E tens toda a razão!!! Por nada! Deviam poder, claro!

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  3. Também sou bastante liberal no que se refere a símbolos, mas não acho que o cruxifixo deva estar na parede da sala de aula , a não ser que a escola seja católica confessa, como não veria com bons olhos que lá estivesse um símbolo judeu, árabe ou outro qualquer. Penso que se um país é laico, todas as religiões devem ter a mesma importância, ainda que o no nosso haja subserviência ancestral em relação a Roma. Penso que há muita ambiguidade e hipocrisia nisto tudo. Quanto as crianças ficam baralhadas.

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  4. Por essa ordem de ideias, imagina se as salas de aula passassem a expor os símbolos religiosos de todas as doutrinas/procissões de fé dos seus alunos... se bem que em Portugal a coisa não daria para enfeitar mto a parede, imagina lá como iria ser em países como a França ou até mesmo a Itália! A ser igual, então que seja igual para todos, e as paredes da escola mais pareciam uma galeria de arte! Acho que os símbolos religiosos devem limitar-se aos indivíduos. Se um católico quiser usar a cruzinha ao peito, pois mto bem, mas agora isto de andarmos a impôr ideologias a terceiros, é que não. A não ser, é claro, em escolas que sejam assumidamente católicas.

    P.S. Para quando mais postas? Andas muito pouco intervencionista...

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  5. Monsieur/Madame Anónimo =P

    As tuas conclusões não seguem daquilo que disse. Eu referi-me ao caso italiano, em que o Estado viu-se alvo de um processo para eliminar os crucifixos. Num país com muitas confissões religiosas deve, tal como na Itália, reinar o bom senso... Se faz sentido ou não deixarem-se os crucifixos numa escola particular numa comunidade qualquer, é algo que tem de ser determinado aí. É uma verdadeira não questão.

    Ah! E um crucifixo na parede não impõe ideologia nenhuma. Andei 13 anos numa escola católica e de todos os meus colegas para aí 2 são católicos... E havia lá alunos de outras confissões religiosas, cujas crenças eram respeitadas pela direcção.

    A sério! Se falta alguma coisa, é bom senso.

    Quanto a postar pouco.... Não tenho assunto!

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  6. Idealmente, a escolha do número de anos de escolaridade do Helderzinho deveria pertencer ao próprio. O problema é que para o próprio poder tomar uma decisão gizada precisa de uma escolaridade mínima. Claro que os analfabetos tomam decisões gizadas e aceito que me apontem alguma arrogância.
    Mas a verdade é que mesmo dando de barato que um indivíduo analfabeto, que pouco conhece além do campo em que trabalha, está em condições semelhantes a um outro com uma formação mais avançada (um ponto de que discordo, mas que pode ficar para outras núpcias), quando o Helderzinho passasse a puberdade e decidisse que lhe era conveniente aprender a ler e a multiplicar, talvez lhe fosse difícil. E menos difícil seria, depois de uma escolaridade mínima cumprida, voltar ao campo, se assim o desejasse.
    Não, não somos plenamente livres. E não vejo boa razão para deixar o futuro do Helderzinho de tal forma sujeito ao arbítrio da Dona Conceição. Afinal ele não é um simples objecto de consumo. Ou será?

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  7. Caro Anónimo,

    A questão de princípio é a dignidade fundamental de todos os indivíduos: de que são capazes de agir em consciência dadas as suas circunstâncias.

    Ninguém falou em "condições semelhantes". Isso não existe. As circunstâncias de cada um são diferentes e incomparáveis. Não tenho razões objectivas para dizer que a situação do Helderzinho de mãe analfabeta é pior do que a minha. Claro que, para mim, na minha visão do mundo, acho que sim. Mas isso não legitima que eu interfira com a vida de todos aqueles cuja hierarquia de valores e visão do mundo difira da minha.

    Sim, acuso-te de arrogância. =)

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  8. Quem falou em condições semelhantes fui eu. E em relação a um cenário ideal, que, de facto... não existe! E era isso que queria realçar!
    O ponto que eu quero referir é este: a Dona Conceição, pondo o Helderzinho a trabalhar desde pequenino, está a empurrá-lo para um determinado caminho. Que não sei se é bom nem mau. O Helderzinho é que saberá.
    Mas se por hipótese o Helderzinho o achar mau e quiser enveredar por outro (por exemplo, ser físico), pode ter sérias dificuldades. Um indivíduo que aos 20 anos é analfabeto tem uma limitação muito séria para um dia se doutorar em física.
    Enquanto que se aos 20 anos (ou aos 15, ou até mais cedo) se fartar de andar na escola e quiser realmente ir trabalhar para o campo, pode fazê-lo sem grandes custos.
    Claro que há sempre limitações às oportunidades que cada um tem. Mas aqui trata-se, efectivamente, de oferecer a cada um leque mais alargado de possibiidades de escolha (maior liberdade) para a escolha do seu futuro.
    Porque não acho que o futuro de cada um deva ser determinado por imposições arbitrárias dos pais.
    Já agora, chamo-me Francisco!

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  9. Francisco,

    Eu também não acho que (todo) o futuro deva ser determinado por imposições arbitrárias dos pais. Mas seria absurdo aceitar que nada do nosso futuro foi ou devia ter sido determinado pelos nossos pais.

    Depois, creio que debates um não problema. A culpa é minha de ter ido buscar o caso do Helderzinho para exemplificar: é com os casos extremos que melhor conseguimos ilustrar os nossos princípios. Mas não creio que houvesse muitas situações como as que descreves (mesmo que houvesse era irrelevante), ou pelo menos que houvesse mais do que as que já há (é esta a questão).

    Lembro-te que, na história, alguns dos grandes intelectuais foram autodidactas e abandonados pelos pais. O real é aberto, a causalidade múltipla. A questão de princípio é só uma, e tu não a debateste: apenas pegaste no facto incontornável de que há desigualdades de oportunidades e, com isso, num salto argumentativo, legitimaste a acção do Estado. ;-)

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