A primeira vez que votei foi no referendo sobre o aborto. Nessa altura misturava três dimensões que hoje prezo muito em ver separadas: a estética, a ética e a política. Lembro-me que achava repugnante a ideia de uma mulher abortar sem avisar o pai da criança que, eventualmente, pudesse querer cria-la. A minha interpretação de um regime democrático passava por uma concepção do voto como vector agregador das inclinações éticas e estéticas do eleitorado. Assim, achei que devia responder à pergunta que me era colocada directamente: votei não porque considerava que deveria expressar as minhas reservas (puramente estéticas!).
Hoje votaria sim. Não porque os meus princípios tenham mudado muito (neste tópico mantêm-se semelhantes) mas porque passei a distinguir claramente aquelas três dimensões. Em geral, continuo a achar repugnante uma mulher numa relação estável abortar sem avisar o parceiro. Mas não o acho imoral e sobretudo acho que sobre o seu corpo ela tem um direito absoluto.
Um exemplo corriqueiro: acho repugnantes aqueles perfumes florais que as raparigas da minha geração insistem em usar. Mas não acho imoral que elas os comprem, nem que devia haver uma lei que os proibisse…
Aliás, hoje vou mais longe. Toda a mulher deve poder abortar, sem qualquer impedimento, até ao momento em que as águas rebentem (podem sugerir outro momento… Mas tem de ser posterior). Pode ser detestável e terrivelmente imoral, mas ninguém pode iniciar a força física contra alguém por esta dispor livremente do seu corpo. Um contra-argumento frequente é o de que, nesse caso, ninguém pode impedir um bombista suicida de se fazer explodir. 1) ninguém o deve impedir se ele o fizer em sua casa; 2) antes de as águas rebentarem o feto é apenas um crescimento no corpo da mãe, como um caroço. Usando um aristotelismo, é apenas um ser humano potencial e não actual. Portanto, enquanto o bombista previsivelmente inicia violência contra outros seres humanos, um aborto não – o feto não é um ser humano fisicamente independente.
Reitero que, ética ou esteticamente, podemos condenar a prática do aborto. Mas, politicamente, creio que os direitos fundamentais têm de ter precedência lexicográfica sobre tudo, e o direito a dispor do nosso corpo é o mais fundamental deles todos.